Crônica

Foco Sertanejo
By -

A SOMBRA DO PERDÃO

Na minha opinião, não conheci casal mais feliz. Não devo dizer os nomes por respeito ao amor deles juntos, e para cumprir a promessa de um segredo. Apenas conto o fato porque é um episódio que marcou uma existência.

Cenário: Lajes - uma cidade pequena no interior do Estado. Ele, a quem vou chamar de Eraldo, marido exemplar. Ela, a quem chamarei de Amarilde, esposa obstinada, mas de temperamento explosivo nos constrangimentos.

Era verão. Durante esta fase de clima quente, Eraldo costumava dormir no escritório, que ficava separado da sua residência por um jardim. Era um costume que não gerava suspeita alguma de Amarilde, até porque ele, habitualmente, gostava de trabalhar à noite durante algumas horas.

Naquele tempo, a energia da cidade era fornecida pelo “motor da luz” que funcionava entre seis e dez horas da noite. Depois disso, as pessoas utilizavam candeeiro ou lamparinas para alumiar o sono e a vida. Não era exatamente o caso de Eraldo. Ele preferia dormir no escuro total. Ele falava que o sono era um “treino da morte” por isso tinha que ser no escuro.

Fiado nas sombras, Eraldo cometeu, talvez, o maior desatino da sua convivência com Amarilde. Ele tinha marcado um encontro com uma mulher logo que apagassem a luz da cidade. Para não correr riscos maiores, Eraldo, ao sair do escritório por volta das dez e trinta da noite, deixou enrolado na rede em que dormia um caçuá. Era o que tinha disponível para dar a impressão de um corpo, na hipótese de ser procurado eventualmente pela esposa. As pessoas que não são dadas à infidelidade geralmente são ingênuas nos seus álibis e despistes.

Aquela noite trouxe o escuro para os dias de Eraldo. Ao sair para o encontro, com a ansiedade dos clandestinos, ele deixou o portão aberto. O descuido foi fatal. Algumas cabras que eram criadas soltas pela cidade entraram no jardim da sua casa. Nesse tempo, Amarilde acorda, percebe os animais e chama por Eraldo. Como ele não respondeu, ela vai até o escritório, candeeiro na mão. Lá, a cena da rede e do cacuá. Ninguém sabe o que passou no coração de Amarilde no quadro surrealista da traição. As mulheres têm o poder das grandes dimensões no universo dos detalhes. Elas são mais íntimas da vida do que os homens. Os sentimentos dos homens são guardados nos bolsos da roupas e que mudam conforme as roupas. Os das mulheres, quando aparecem, já surgem com raízes.

Eraldo demorou a voltar. De longe, ele já tinha percebido a tragédia. No seu escritório, a luz do candeeiro era a revelação angustiante da presença da sua mulher. Nenhuma luz foi tão forte na sua vida. Ela não estava guiando seu regresso, mas o caminho da vergonha e do ridículo de um caçuá de batatas deitado na sua rede. Ele me disse que nessa hora, distante uns quinze metros de seu escritório, ele parou. Para ele o casamento estava perdido. Ele precisava urgente imaginar uma solução que não fosse uma fuga em desabalada carreira. Algo que pudesse significar uma renúncia ou um pedido rastejante de perdão.

Enfim, assumindo a coragem da humilhação plena, entra no escritório, o seu palco iluminado. Ele nunca havia notado a intensidade da luz de um candeeiro, quando ilumina uma traição. Amarilde, sentada, olhava a rede e o caçuá. Nenhuma palavra dela, além do gesto calado de uma profunda decepção. Eraldo, também em silêncio, deita-se na rede ao lado do caçuá e diz com a voz dos vencidos: Amarilde, escolha...

Ela entendeu a mensagem, saiu do escritório, apagou o candeeiro e com a luz indo embora ela libertou o perdão.

Kerubino Procópio

#buttons=(Ok, Go it!) #days=(20)

Nosso site usa cookies para melhorar sua experiência.Ver Agora
Ok, Go it!